Espírito republicano (Editorial Estadão)

Tarcísio de Freitas e Lula — Foto: Rovena Rosa/Agência Brasil

A tragédia climática que se abateu sobre os municípios do litoral norte de São Paulo durante o carnaval, provocando dezenas de mortes, desalojando milhares de moradores e turistas e deixando um rastro de destruição material, reavivou na memória coletiva do País a importância capital da coordenação entre as três esferas de governo, especialmente nos momentos em que a população mais precisa do poder público.

Foi com um misto de alívio e esperança que o País assistiu à superação das divergências políticas entre o presidente Lula da Silva (PT); o governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas (Republicanos); e o prefeito de São Sebastião, Felipe Augusto (PSDB), em prol do atendimento às vítimas das chuvas torrenciais no fim de semana passado. Assim se constrói uma sociedade civilizada: pelo exemplo. Líderes políticos devem sobrepor imperativos morais às suas eventuais diferenças político-ideológicas.

Já nas primeiras horas após o desastre, na madrugada de sábado para domingo, a prefeitura de São Sebastião, município mais afetado pelas chuvas, o governo estadual e o governo federal articulavam ações conjuntas e complementares de amparo à população local, tanto os moradores da região como os milhões de turistas que desceram para as praias durante o feriado prolongado.

Lula agiu bem ao interromper seu descanso na Base Naval de Aratu, na Bahia, e ir pessoalmente se encontrar com Tarcísio e Felipe Augusto em São Sebastião. “Nós estamos juntos. Acabou a eleição”, disse o presidente ao lado dos dois mandatários. Em momentos assim, a voz do chefe de Estado e de governo é importante para confortar as vítimas e para mobilizar os recursos, humanos e financeiros, necessários para a superação de crises.

Tarcísio, por sua vez, também acertou ao transferir seu gabinete de trabalho para São Sebastião, onde promete permanecer até a normalização da situação. O governador agradeceu o apoio de Lula e reforçou o compromisso de governar São Paulo em parceria com o governo federal em defesa dos interesses do Estado. Ainda é preciso apurar o que poderia ter sido feito para evitar tantas mortes, mas é certo que, irrompida a tragédia, não faltou governo para mitigar seus efeitos.

Em tempos normais, a parceria entre entes federativos seria uma obviedade, até por se tratar de uma obrigação constitucional. Historicamente, divergências políticas entre presidentes, governadores e prefeitos sempre foram suspensas em momentos que clamavam pela ação conjunta em assistência à população. Porém, quase nada pareceu normal no País nos últimos quatro anos, de modo que foi reconfortante ver as três esferas de governo voltarem a atuar em conjunto.

Passado o desditoso mandato de Jair Bolsonaro na Presidência da República, ao longo do qual não faltaram oportunidades para o ex-presidente atacar o pacto federativo insculpido na Constituição e manifestar seu mais profundo desprezo pela vida e pelo bem-estar dos brasileiros, o País estava saudoso da primazia do interesse público, da cooperação entre os governantes, independentemente de suas afiliações ideológicas e partidárias.

É lamentável, no entanto, que essa lição de solidariedade e republicanismo dada por Lula, Tarcísio e Felipe Augusto não tenha sido compreendida por mais gente. Bolsonaro passou, mas os danos que causou para a democracia brasileira ainda perdurarão por muito tempo, como revelaram as agressões físicas e morais sofridas pelos repórteres Renata Cafardo e Tiago Queiroz, do Estadão, enquanto ambos cobriam a tragédia no litoral norte de São Paulo. Xingados e classificados como “comunistas e esquerdistas” por bolsonaristas em um condomínio de luxo em Maresias, os jornalistas foram derrubados e quase perderam seus equipamentos de trabalho.

Por um lado, a tragédia no litoral norte de São Paulo revelou esse Brasil que volta à sua normalidade institucional, há muito ansiado. Por outro, deu a dimensão do enorme desafio que é superar a irracionalidade que prevaleceu no País durante os últimos anos.

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