opinião

‘Ainda estou aqui’ ilustra transição incompleta para a democracia (por Bernardo Mello Franco)

mauriliojunior.com

Selton Mello e Fernanda Torres reproduzem foto de Rubens e Eunice Paiva para o filme 'Ainda estou aqui' — Foto: Acervo pessoal/Divulgação
Bernardo Mello Franco

No final do filme “Ainda estou aqui”, que estreou nos cinemas na quinta-feira, o público é informado sobre o desenrolar do caso Rubens Paiva. A Comissão da Verdade desmontou a farsa da ditadura para encobrir o assassinato, mas não conseguiu localizar os restos mortais do ex-deputado. Os militares que participaram do crime foram identificados e denunciados, mas ninguém foi a julgamento.

A história ilustra as lacunas da nossa transição incompleta para a democracia. A pretexto de curar feridas do passado, o Brasil ignorou o exemplo de países vizinhos e ofereceu proteção e impunidade aos torturadores. Os herdeiros dos porões voltaram ao poder pelo voto, tentaram outro golpe e agora pedem uma nova anistia.

Rubens Paiva é um dos primeiros nomes na lista de mais de 200 vítimas de desaparecimento forçado no regime militar. Vivia no Rio com a família quando foi capturado por agentes da repressão, em janeiro de 1971. Sua mulher, Eunice, e uma das filhas, Eliana, também chegaram a ser presas ilegalmente. Ao contrário delas, o ex-deputado nunca voltou para casa.

O filme de Walter Salles narra a saga de Eunice, interpretada por Fernanda Torres, para criar os cinco filhos ao mesmo tempo em que buscava o paradeiro do marido. Ela percorreu gabinetes, pressionou autoridades, ouviu promessas de que Paiva estava vivo e seria libertado. Aos poucos, juntou os cacos e se convenceu de que ele havia sido morto na tortura. Em 1996, depois de 25 anos de luta, conseguiu que o Estado emitisse a certidão de óbito do marido. Foi uma vitória simbólica, que muitas famílias de vítimas ainda esperam.

“Estou feliz com a repercussão do filme. Espero que ele ajude a sensibilizar as pessoas para elucidar casos que continuam em aberto”, diz a procuradora Eugênia Gonzaga, presidente da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos. Extinto no governo de Jair Bolsonaro, o grupo foi recriado em julho por decreto do presidente Lula. Na próxima quinta, deve aprovar um novo plano de trabalho.

Entre as prioridades, estão a retificação de assentos de óbito, a busca por restos mortais e a retomada dos trabalhos para identificar ossadas localizadas na vala de Perus, em São Paulo. A comissão também deve reabrir casos arquivados pela gestão passada, como os do educador Anísio Teixeira e do embaixador José Jobim.

Em 2014, o Ministério Público Federal denunciou cinco militares reformados pela morte e ocultação do cadáver de Rubens Paiva. Meses depois, o processo foi suspenso pelo ministro Teori Zavascki, do Supremo Tribunal Federal. Ele considerou que os réus estavam protegidos pela Lei da Anistia. A Procuradoria-Geral da República contestou a decisão, mas o mérito do caso nunca foi julgado.

A ação ficou seis anos parada no gabinete de Alexandre de Moraes, que sucedeu Teori. No último dia 24, ele pediu novo parecer à PGR, que ainda não se manifestou. O tempo corre a favor da impunidade. Desde que a denúncia foi apresentada, ao menos três dos cinco acusados morreram sem prestar contas à Justiça.

No livro “Ainda estou aqui”, que deu origem ao filme, Marcelo Rubens Paiva relata que a mãe escolheu enfrentar a tragédia de cabeça erguida: “Nunca se deixou cair no pieguismo, não perdeu o controle diante das câmeras”. O escritor conta que chegou a ser estimulado a se vingar dos algozes do pai, mas nunca levou a ideia a sério. “Lutar pela democratização seria uma vingança mais efetiva, e esperar que a Justiça numa nova democracia fizesse a sua parte. O que espero até hoje”, anota.