Entre a inteligência e o fuzil: dois modelos de Estado em confronto (Por Rômulo Oliveira)

A verdadeira contenção de que o Brasil precisa, portanto, não é a dos morros do Rio, mas a do próprio Estado — que, em nome da ordem, insiste em reproduzir a barbárie
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Moradores retiram cerca de 60 corpos em área de mata após operação no Rio de Janeiro – Foto: Tomaz Silva/Agência Brasil

A recente Operação Contenção, realizada no Rio de Janeiro, reacende um debate que o Brasil insiste em adiar: o da segurança pública como espelho da nossa política e da nossa moral coletiva. Na mesma semana em que as favelas da Penha e do Alemão se tornaram palco de uma incursão com mais de sessenta mortos, São Paulo colhia os resultados da Operação Carbono Oculto, que desmantelou uma sofisticada rede de lavagem de dinheiro do PCC no setor de combustíveis. Duas ações sob o mesmo discurso de enfrentamento ao crime organizado, mas que expõem dois projetos distintos de Estado — um que pensa, e outro que atira.

A operação paulista nasceu do trabalho conjunto entre Ministério Público, Receita Federal e Polícia Federal. Seguiu o rastro do dinheiro, não o do sangue. Atingiu empresários, doleiros e operadores financeiros que mantinham o PCC economicamente vivo, bloqueando milhões de reais e desarticulando o braço financeiro da facção. Mais do que uma operação policial, foi um exercício de governança criminal: o uso de inteligência e tecnologia para enfraquecer a estrutura econômica que sustenta a criminalidade organizada.

O caso também revelou uma face contemporânea da lavagem de capitais: o uso de influenciadores digitais e figuras públicas como instrumentos de escoamento financeiro e legitimação simbólica do crime. Muitos desses agentes, sob o manto da “ostentação” e da “cultura do luxo”, servem — consciente ou inconscientemente — como pontes entre o dinheiro ilícito e o consumo aparente, promovendo um ciclo de normalização estética do crime. O tráfico, hoje, não precisa apenas de armas; precisa de imagem, de branding. E o ambiente digital se tornou um território tão estratégico quanto as rotas de cocaína.

No Rio, a Operação Contenção seguiu a direção oposta: uma ofensiva armada de larga escala, com blindados, helicópteros e drones sobrevoando áreas densamente povoadas. A promessa era “retomar territórios”, mas o resultado foi previsível — dezenas de mortos, nenhum líder relevante preso, e a rápida reocupação das áreas pelos mesmos grupos criminosos. A diferença metodológica é gritante: enquanto a Carbono Oculto destrói as bases financeiras que dão oxigênio ao crime, a Contenção apenas pulveriza a consequência mais visível, sem interferir no fluxo que a mantém.

Sob a ótica da análise de riscos e gestão de crise, a disparidade também é evidente. A Carbono Oculto demonstra maturidade institucional ao gerir o risco de maneira preventiva, controlada e de baixo impacto social. Planejou-se para mitigar danos e maximizar resultados, com monitoramento, rastreamento e cooperação interestadual — um exemplo de resposta estatal estratégica e eficiente. Já a Contenção representa o oposto: improvisação operacional, ausência de comunicação transparente e um custo humano e reputacional incalculável. Em termos de gestão de crise, o Estado Fluminense transforma um problema criminal em uma crise humanitária, ampliando a desconfiança pública e fragilizando sua legitimidade.

A leitura criminológica é inequívoca: a Carbono Oculto reflete o Estado que compreende o crime como fenômeno complexo e econômico; a Contenção espelha o Estado que se esgota em violência e espetáculo. A primeira inova, a segunda repete. A primeira previne, a segunda reage. O contraste é também moral: o Estado que investiga é aquele que acredita no Direito; o que atira é o que desistiu dele.

Como já ensinava Alessandro Baratta – referência nos estudos da criminologia crítica – a criminalidade é antes um espelho das desigualdades do que um desvio isolado. A Operação Contenção é a confirmação disso: ela não busca resolver o crime, mas reafirmar as fronteiras sociais que o produzem. Já a Carbono Oculto mostra que o combate ao crime pode ser conduzido por meio da razão e da técnica, e não do pavor e da morte.

E é justamente aí que reside a diferença entre o Estado democrático e o Estado bélico. O primeiro age com inteligência para preservar a vida; o segundo mata para provar que ainda governa. Como lembrava o jurista Eugenio Raúl Zaffaroni, “todo poder punitivo tende a expandir-se até o limite da barbárie se não for contido pela razão”. A verdadeira contenção de que o Brasil precisa, portanto, não é a dos morros do Rio, mas a do próprio Estado — que, em nome da ordem, insiste em reproduzir a barbárie.

Advogado Criminalista, pós-graduado em Ciências Criminais, Perícia e Segurança Pública. Especialista em Comunicação Estratégica e Gestão de Crise.

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