Mundo secular olha para o conclave no Vaticano com admiração ou quase inveja

Rito católico vira refúgio simbólico da modernidade exausta
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Papa Leão XIV é apresentado ao mundo após ser eleito no conclave de 2025

Sentado num café de Lisboa, olho para a TV e vejo um plano fixo da chaminé do Vaticano. Passa uma hora, duas. O mundo aguarda um novo papa —e, por mundo, não falo apenas do mundo católico. Falo da comunidade de crentes e não crentes, com os olhos postos numa modesta chaminé. Como explicar o fascínio?

Escrevi nesta Folha que a adoração progressista de Francisco, para além de revelar confusão doutrinal, era sobretudo um sintoma da falta de repertório e de referências da esquerda contemporânea. Alguns leitores protestaram. Mantenho.

E, para eles, nova tese: o mundo secular olha para o conclave com admiração, quase inveja. É como se os rituais da eleição papal —portas fechadas, sigilo absoluto, escolha colegial— fossem um bálsamo contra os ruidosos processos da política democrática.

Esse contraste piora em tempos de polarização extrema e de escolhas populares grotescas, como temos visto nos quatro cantos da Terra.

Ali, sob o mais belo teto pintado por mãos humanas, há tradição, solenidade, mistério. Para usar uma expressão célebre, o “desencantamento do mundo” não passou pela Santa Sé.

E, quando o eleito é apresentado ao povo, não há choro e ranger de dentes entre facções ou fiéis. Ninguém invade a Basílica de São Pedro para quebrar a “Pietà” de Michelangelo ou o Baldaquino de Bernini. Numa eleição papal, não há perdedores. A unidade simbólica entre o líder e o seu rebanho é imediata, como se viu quando Leão 14 apareceu ao público.

Por isso pergunto: até que ponto a atenção desmedida do mundo secular aos protagonistas e rituais da Igreja não revela, no fundo, o vazio cultural —e talvez até espiritual— desse mundo? Fumo branco para quem souber responder.

Calma, leitor ansioso: serei o último a defender um retorno aos tempos do Sacro Império Romano-Germânico, quando o imperador era escolhido por métodos semelhantes. Não troco a soberania popular e a transparência dos seus processos decisórios por nada. A democracia liberal é um avanço, não um retrocesso, ainda que aumente o número daqueles que a repudiam.

Além disso, concordo com Marianne Rozario, pesquisadora da Universidade St Andrews, sobre as distorções midiáticas e políticas que se criaram durante o conclave: a Deus o que é de Deus e a César o que é de César. Falar de cardeais conservadores ou progressistas é uma imposição absurda de conceitos políticos mundanos a um universo onde a doutrina, o consenso e a transcendência têm importância capital.

Esse desatino continua com o novo papa. É de esquerda? É de direita? Será um firme opositor de Donald Trump, seu compatriota maligno?

É o que eu digo: se os democratas americanos não fazem o seu papel (e não fazem), eles esperam que seja o papa a lutar contra o anticristo. E por que não?

Leão 14 pode ser uma referência a Leão 13, o “papa dos trabalhadores”, o autor do “Rerum Novarum” (1891), o obreiro intelectual da doutrina social da Igreja. Mas também pode ser uma referência ao primeiríssimo dos Leões, Leão Magno, que conseguiu travar Átila, o Huno, e seus instintos destrutivos contra Roma. Nessa chave interpretativa, Trump é o novo Átila. Não é delírio, leitor. Juro que já li algures.

Nossas cabeças estão cheias de política, de má política, como se a ideologia tivesse colonizado todos os cantos da nossa cabeça, ou da nossa alma. Também aqui persistimos no erro de ter as ideias fora do lugar.

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