política

O estranho acordo de R$ 600 milhões da paraibana Tarciana Medeiros no Banco do Brasil

Por Revista Crusoé

Brasília (DF)

Existem coincidências que saltam aos olhos. Suscitam inclusive a dúvida se não seria necessário usar aspas a respeito delas: “coincidências”… Um desses casos aconteceu há pouco no Banco do Brasil. Depois de se arrastar por quase 30 anos na justiça e ter uma proposta de acordo veementemente rechaçada pela diretoria da instituição, em momento tão recente quanto 2022, uma demanda multimilionária encontrou solução relâmpago sob a presidência de Tarciana Medeiros, que chegou ao cargo sob as bênçãos de dois cardeais do MDB, o senador Veneziano Vital do Rêgo e seu irmão, o ministro do TCU Vital do Rêgo. Como mostram documentos obtidos por Crusoé, foram necessários apenas 74 dias (entre 30 de junho e 12 de setembro de 2023) para que um acordo de R$ 600 milhões fosse desenhado e o Conselho Diretor do Banco desse a sua aprovação final. O mais espantoso de tudo é que isso aconteceu mesmo diante de um parecer confidencial do departamento jurídico, que apontou o risco de a transação, tal como desenhada, ser vista como uma simulação jurídica para evitar o pagamento de débitos fiscais, débitos trabalhistas e honorários advocatícios, permitindo que o dinheiro fosse todo embolsado pelos beneficiários. Quem são eles? A família do empresário maranhense Antônio Celso Izar, que teve entre os sócios, até pouco antes da formalização do acordo com o BB, o emedebista Edison Lobão, ministro de Lula em seu segundo mandato e do governo de Dilma Rousseff.

A composição entre o Banco do Brasil e o Grupo Caiman foi criticada por vários ex-executivos da instituição pública ouvidos pela reportagem. Alguns a consideram, inclusive, imoral. Não somente pelo valor, mas porque ainda existiam possibilidades recursais – em um dos processos, há parecer do Ministério Público Federal a favor do banco, informação citada pela própria assessoria jurídica do BB em um documentos – e porque não apenas Lobão, mas também outros políticos influentes de Brasília, fizeram lobby ao longo dos últimos para que o Planalto ajudasse a encerrar a contenda. Em 2022, irritados com as resistências a um acordo, integrantes da base do governo pediram ao então ministro da Casa Civil Ciro Nogueira e ao próprio presidente Jair Bolsonaro demissões na cúpula do banco.

A essas críticas é preciso somar aquilo que os documentos obtidos por Crusoé revelam: a diretoria do Banco do Brasil aprovou um negócio que envolve a possível burla a credores – entre os quais, a própria União. O enredo é complexo e será explicado abaixo. Mas pode-se descrevê-lo em linhas gerais. No litígio com o banco público havia duas empresas de um mesmo grupo, o Grupo Caiman. Uma delas, a Aimar Agroindustrial do Maranhão S/A, tem um passivo fiscal e trabalhista estimado em R$ 450 milhões. A outra, que se chama Coopergraças – Cooperativa Agrícola Mista Nossa Senhora das Graças Ltda., está saneada. Para evitar que a maior parte dos R$ 600 milhões do BB fosse tragada pelos credores da Aimar, arquitetou-se uma solução em que o dinheiro seria integralmente creditado na conta da Coopergraças.

Os pareceristas da diretoria jurídica do BB, capitaneada por Lucinéia Possar, profissional muito conhecida em Brasília e próxima de muitos nomes da cúpula do Judiciário, reconhecem que a manobra poderia ensejar suspeitas. “No tocante ao questionamento por negócio jurídico simulado, o risco exite”, escrevem. Eles acreditam, porém, que as chances de o banco ser condenado são remotas. Um dos motivos é que o acordo pode ser caracterizado como financeiramente vantajoso. E também há razões como esta: “A alegação de negócio jurídico simulado dependerá de prova quanto ao acerto aparente entre o Banco, a Aimar e a Coopergraças, com a internçao de prejudicar os tercerios credores, onde o ônus da prova recairá sobre quem alega a simulação, não sobre o banco”.

Em nota oficial (leia a íntegra no final da reportagem), o BB classificou as críticas como “ilações” e disse que a decisão de desembolsar os R$ 600 milhões respeitou “rigorosamente os critérios técnicos e a governança da empresa”, tendo eliminado “riscos jurídicos e financeiros próprios de processos na situação jurídica em que se encontravam”. A instituição afirmou também que vai pedir à Polícia Federal a abertura de inquérito, para apurar o vazamento de documentos internos.

A história como um todo

Essa história rocambolesca teve início em 1985. No embalo do Programa Nacional do Álcool, Proálcool, a Destilaria Caiman S/A, que hoje opera com o nome Aimar Agroindustrial do Maranhão S/A, conseguiu um financiamento do Banco Internacional para Reconstrução e Desenvolvimento, Bird, para a implantação de uma destilaria de etanol na cidade de Porto Franco (MA), região de influência política da família Lobão. Por exigência do Bird, o Banco do Brasil entrou como agente financeiro, assumindo os riscos de crédito da operação. O próprio Lobão serviu como avalista.

A destilaria tinha como sócios vários membros da família Izar:  Antônio Celso Izar (presidente da companhia), Jorge Luiz Izar, Semi Izar, Julieta Izar e Luiz Fernando Izar. Ambicionando atuar em toda a cadeia de produção de álcool, os empresários transformaram outra de suas empresas em cooperativa de trabalhadores, dando origem à Coopergraças – Cooperativa Agrícola Mista Nossa Senhora das Graças Ltda. Isso lhes deu acesso a linhas de crédito específicas para o plantio e o beneficiamento de cana-de-açúcar.

Entre os anos de 1985 e 1992, o grupo fechou doze contratos de crédito com o BB, num total estimado de 12 milhões de dólares. A Coopergraças cultivaria a cana e a Destilaria Caiman transformaria a produção em álcool. Esse era o plano.

Segundo as regras do Bird, os recursos seriam liberados obedecendo a um cronograma “físico-financeiro”. Em outras palavras, se a construção atrasasse por falhas no projeto, a liberação das parcela também ficaria comprometida. E foi isso o que ocorreu, conforme os autos processuais.

Como os empreendimentos emperraram, o pagamento das dívidas do Grupo Caiman com o Banco do Brasil começou a não acontecer. Em 1993, o banco púbico decidiu acionar a justiça para tentar reaver os valores emprestados. E aqui acontece um plot twist.

Indignados com a cobrança judicial e o cessamento das linhas de crédito, os empresários também ingressaram duas ações, uma pela destilaria e outra pela cooperativa. Fizeram pedidos de indenização por perdas e danos e lucros cessantes. Esses últimos têm origem quando uma atividade econômica que estava em andamento é interrompida por culpa de um terceiro. Por exemplo, quando alguém bate no carro de um taxista, pode ser obrigado a pagar não apenas pelo conserto, mas também pelas diárias que ele deixou de ganhar por estar parado — o lucro cessante.

No caso do Grupo Caiman, a destilaria ainda não havia entrado em operação e a cana-de-açúcar, em grande medida, estava por plantar. Seus advogados alegaram, contudo, que o BB atrasou a liberação dos empréstimos e creditou valores desatualizados. Essa teria sido a “única razão” para a destilaria não ter ficado pronta. O ressarcimento pedido foi de 75 milhões de dólares. A Coopergraças, por sua vez, apresentou uma fatura de 46 milhões de dólares pelas safras não plantadas entre 1987 e 1994.

Em abril de 1995, a 2ª Vara Cível de Imperatriz, no Maranhão, concedeu a primeira decisão contrária ao Banco do Brasil, justamente com base nos lucros cessantes da Coopergraças. Depois o caso tramitou tanto em primeira quanto em segunda instância do Poder Judiciário estadual. Após condenações sucessivas no Maranhão, as sentenças transitaram em julgado no STJ, nos anos de 2007 (Coopergraças) e 2009 (Caiman), restando ao BB entrar com ações rescisórias para tentar reverter as condenações.

Nos julgamentos das rescisórias, também ocorreram várias idas e vindas, com embargos de ambas as partes no Tribunal de Justiça local. Os casos, no TJ, caíram nas mãos de Nelma Sarney, cunhada de José Sarney, e do desembargador Jorge Rachid – que foi alçado à condição de magistrado na época em que Lobão era governador.

Obviamente, um caso desse vulto chegaria ao STJ. E chegou: na virada da década de 2020, o caso passou às mãos do ministro Luís Felipe Salomão que tentou uma conciliação entre as partes. Entre março de 2021 e setembro de 2022 houve duas propostas, que não se concretizaram. A situação só mudou com a mudança de gestão, no governo Lula.

Fausto Ribeiro, que presidiu o banco entre abril de 2021 e janeiro de 2023,  afirmou a Crusoé que nunca assinaria um acordo nesses termos e nesse valor. “A matéria foi discutida no âmbito do Conselho Diretor e houve decisão explícita de não propor nenhum tipo de acordo. Eu, pessoalmente, não topei porque achava que era algo imoral, por considerar que o Banco do Brasil era credor do grupo empresarial e não devedor”, diz ele.

“Segui os mesmos princípios de gestão de outros ex-presidentes do BB, como Rossano Maranhão e Paulo Rogério Caffarelli. O Banco tem excelentes advogados, poderia brigar por mais uns 5 anos e reverter esse absurdo. Não entendi a pressa.” O setor jurídico do BB estimava em 40% as possibilidades êxito no processo quando ele chegou às mãos de Ribeiro. Documentos obtidos pela reportagem mostram que agora, nas mãos de Tarciana, a estimativa se mantinha inalterada.

Mencionado por Ribeirto, Rossano Maranhão diz que não analisou esse caso especificamente quando presidiu o banco, mas afirmou que não endossaria o acordo. “É necessário esgotar todos os recursos. Estamos falando em dinheiro púbico, é diferente do que acontece na iniciativa privada”, diz.

Em março de 2023, logo no começo do governo Lula, o ministro Luís Felipe Salomão, do STJ, sinalizou que poderia decidir a causa. A partir daí, as coisas se precipitaram. Entre 14 de abril e 03 de julho houve três comunicações por e-mail  com esboços de um novo acordo. No dia 30 de julho, sacramentou-se o valor de R$ 600 milhões, considerado vantajoso porque uma consultoria havia estimado em até R$ 5,5 bilhões o pagamento em caso de condenação nos tribunais. Três pareceres jurídicos, analisando os riscos do negócio, foram redigidos entre os dias 1 e 9 de setembro, sendo esse último emitido na mesma data da nota técnica que fechou os termos do acordo. Em um único dia, as 25 assinaturas necessárias, de cinco diretorias diferentes, foram colhidas num espaço de 3 horas e 15 minutos, a fim de não perder o espaço na pauta da reunião do Conselho marcada para 12 de setembro de 2023. Nessa data, os donos do Grupo Caiman puderam receber parabéns dos amigos pela conquista de R$ 600 milhões do Banco do Brasil.

Nota oficial do Banco do Brasil

“O Banco do Brasil refuta veementemente quaisquer ilações a propósito da solução firmada em petição conjunta, homologada pelo STJ, na qual houve reconhecimento do pedido formulado pelo Banco, para colocar fim a demanda histórica – mais de 30 anos – em múltiplos processos e em diversas instâncias judiciais.

O estágio processual avançado e o bloqueio judicial existente determinaram a inclusão do caso no Formulário de Referência que o Banco apresentou à Comissão de Valores Mobiliários–CVM na época própria, além de provisionamento conforme determinam os modelos internos e os órgãos reguladores. A decisão de pôr fim às demandas foi tomada respeitando rigorosamente os critérios técnicos e a governança da empresa, eliminando riscos jurídicos e financeiros próprios de processos na situação jurídica em que se encontravam.

Todas as complexidades do caso estão amplamente discutidas nas milhares de páginas que integram os diversos processos judiciais encerrados conforme a petição conjunta, homologada pelo STJ. As tratativas foram realizadas apenas com as empresas diretamente envolvidas e seus respectivos advogados, sem intervenção de qualquer pessoa alheia ao caso.

Causa-nos estranheza a demanda jornalística fazer referência a supostas informações internas que estariam protegidas pelo sigilo empresarial, citando, inclusive, participação de ex-dirigentes e autoridades públicas. Este fato será objeto de pedido de abertura de inquérito policial próprio para apuração das responsabilidades.”