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ONU pede que Brasil legalize aborto e denuncia ‘fundamentalismo religioso’

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JAMIL CHADE/ UOL

Alertando sobre o avanço do que chamou de “fundamentalismo religioso” no Brasil, um dos principais órgãos da ONU que lida com a situação da mulher recomenda ao estado brasileiro que legalize o aborto e descriminalize o ato. A proposta faz parte do informe que o Comitê sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres (CEDAW) submeteu ao governo federal.

No mês passado, pela primeira vez em doze anos, a entidade examinou a situação da mulher no Brasil, numa sabatina que levou até Genebra a ministra das Mulheres, Cida Gonçalves, e uma ampla delegação do governo e da sociedade civil.

Durante a sabatina, um dos aspectos tratados foi o acesso ao aborto legal e a condição de milhares de meninas e mulheres no que se refere aos direitos reprodutivos e sexuais. O debate ocorreu ainda diante da constatação do governo de que, em 2023, mais de 12,5 mil meninas entre 8 e 14 anos foram mães em 2023 no Brasil, num espelho da dimensão da violência contra meninas no país.

Ao concluir sua avaliação sobre o país, as peritas do Comitê da ONU recomendam que o Brasil:

Legalize o aborto e descriminalize-o em todos os casos e garanta que mulheres e meninas tenham acesso adequado a serviços de aborto seguro e pós-aborto para assegurar a plena realização de seus direitos, sua igualdade e sua autonomia econômica e corporal para fazer escolhas livres sobre seus direitos reprodutivos;

Reforce as medidas para combater a taxa alarmante de mortalidade materna, inclusive melhorando o acesso a cuidados pré-natais e pós-natais e a serviços obstétricos de emergência prestados por parteiras qualificadas em todo o território do Estado Parte, e abordar suas causas fundamentais, como complicações obstétricas, gravidez precoce e abortos inseguros;

Mais dinheiro para Ministério das Mulheres

Outra preocupação do Comitê da ONU se refere ao trabalho do Ministério da Mulher. Apesar de elogiar a pasta, as peritas afirmam que o órgão “continua preocupado com os limitados recursos humanos, técnicos e financeiros alocados ao Ministério da Mulher para permitir que ele cumpra seu amplo mandato e com as ferramentas e instrumentos inadequados de governança e regulamentação para padronizar efetivamente a prestação de serviços, impulsionar a responsabilidade das partes interessadas e cumprir suas funções de coordenação e supervisão”.

Durante a sabatina, a fragilidade financeira da pasta chamou a atenção das peritas.

O Comitê, portanto, recomenda que o Brasil “aloque recursos humanos, técnicos e financeiros adequados para o Ministério da Mulher e para os departamentos de gênero em todos os setores”. A meta é a de:

Aumentar sua eficácia na formulação, coordenação e supervisão da preparação e implementação de leis e políticas sensíveis ao gênero nos níveis federal, estadual e municipal;

Desenvolver governança de gênero apropriada, ferramentas e instrumentos regulatórios para padronizar efetivamente a prestação de serviços e cumprir suas funções de coordenação e supervisão;

O Comitê ainda sugere que o estado brasileiro crie uma instituição nacional de direitos humanos.

“O Comitê toma nota da existência do Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH), estabelecido pela Lei nº 12.986 em 2014. No entanto, continua preocupado com o mandato limitado e a falta de independência financeira e administrativa do Conselho Nacional de Direitos Humanos, que não é uma instituição nacional de direitos humanos”, afirmou.

O órgão recomenda que o Brasil “acelere o estabelecimento de uma instituição nacional independente de direitos humanos, de acordo com os princípios relativos ao status das instituições nacionais para a promoção e proteção dos direitos humanos, com um forte mandato para proteger e promover os direitos humanos, inclusive os direitos das mulheres, e forneça a ela recursos humanos, técnicos e financeiros adequados para permitir que ela cumpra efetivamente seu mandato”.

Mais mulheres em vida política e pública

O Comitê também destacou os esforços do Brasil para introduzir medidas para aumentar a representação das mulheres na vida política e pública.

“No entanto, observa com preocupação o uso limitado de medidas especiais temporárias em outras áreas em que as mulheres, particularmente as mulheres rurais, as mulheres com deficiência, as mulheres indígenas, as mulheres quilombolas, as mulheres afrodescendentes e as mulheres lésbicas, bissexuais, transgêneros e intersexuais, estão sub-representadas e em desvantagem, inclusive na vida política, pública, social e econômica, na educação, no emprego, na assistência à saúde e na seguridade social”, afirma.

Diante do cenário, o órgão recomenda que o Brasil amplie o uso de cotas, bolsas de estudo especiais e incentivos financeiros para a contratação de mulheres, e estabeleça metas com prazo determinado para acelerar a conquista da igualdade substancial entre mulheres e homens em cargos políticos, públicos e de segurança.

Ainda assim, as peritas afirmam estar preocupadas diante da “persistência de padrões socioculturais marcados pela discriminação de gênero e profundamente enraizados em estruturas patriarcais”.

Também alertam sobre “a prevalência de estereótipos sobre os papéis e responsabilidades de mulheres e homens na família e na sociedade, que exacerbam os altos níveis de violência de gênero contra mulheres e meninas no Estado Parte, incluindo feminicídio, violência sexual e doméstica e assédio sexual”.

As peritas na ONU ainda apontam, com preocupação, para “o ressurgimento do fundamentalismo religioso e das narrativas conservadoras que discriminam as mulheres e minam a igualdade de gênero e os direitos humanos das mulheres”.

Para reverter esse cenário, o Comitê recomenda que o Brasil adote “medidas, inclusive a educação sobre igualdade de gênero em todos os níveis de ensino e campanhas de conscientização para desmantelar atitudes e estereótipos patriarcais profundamente enraizados em relação aos papéis e responsabilidades de mulheres e homens na família e na sociedade”.

O Comitê também recomenda que o Brasil “promova o compartilhamento igualitário das responsabilidades familiares e domésticas entre homens e mulheres”.

Quanto à participação igualitária na vida política e pública, as peritas observam com preocupação:

Que, apesar de constituírem quase 52% da população, as mulheres ocupam apenas aproximadamente 15% dos assentos no Congresso Nacional;

A prevalência de violência política baseada em gênero e ameaças, inclusive violência on-line e campanhas de desinformação, contra mulheres líderes políticas ou candidatas e seus familiares, apesar da adoção do Plano Nacional de Combate à Violência Política contra a Mulher (2021);

O impacto limitado das medidas especiais temporárias existentes para alcançar a igualdade substantiva de mulheres e homens na vida política e pública, em particular aquelas para mulheres rurais, indígenas, quilombolas, afrodescendentes, mulheres LBTI e mulheres com deficiência;

Que apenas 11 das 131 missões diplomáticas do Estado Parte são chefiadas por mulheres.

O Comitê recomenda, portanto, que o Brasil “intensifique seus esforços para promover a representação igualitária das mulheres no Congresso Nacional, nos cargos governamentais, no serviço estrangeiro, no judiciário e no serviço público nos níveis nacional, estadual e local”.

Isso ocorreria por meio de cotas de paridade de gênero, recrutamento preferencial de mulheres para o serviço público, em particular nos níveis de tomada de decisão, e alterando as leis eleitorais relevantes para exigir a paridade de gênero nas estruturas dos partidos políticos e nas listas eleitorais.

Reportagem

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