Putin não ouviu o Mito

Por Maurílio Júnior

Bernardo Mello Franco (O Globo)

Se não estivesse gravado, seria difícil acreditar. Quando os tanques russos já se aproximavam da fronteira da Ucrânia, um ministro brasileiro assegurou que o mundo podia dormir tranquilo. Segundo Gilson Machado, Vladimir Putin teria desistido da invasão ao ouvir uma “mensagem de paz” de Jair Bolsonaro. “Graças a Deus, já foram retiradas as tropas e não se fala mais em guerra”, decretou.

O dublê de ministro e sanfoneiro não delirou sozinho. Apenas repetiu para as câmeras a mentira que circulava nas redes bolsonaristas. Desde que o capitão pisou no Kremlin, no início da semana passada, a fábrica das fake news trabalhou pesado. Com memes e notícias falsas, propagou a cascata de que o Mito teria evitado a Terceira Guerra Mundial.


A viagem de Bolsonaro produziu pouco resultado e muito constrangimento. Empenhado em bajular Putin, ele ignorou as ameaças à Ucrânia e disse ser “solidário à Rússia”. A fala afrontou a Constituição, que obriga a política externa brasileira a respeitar os princípios da não intervenção e do respeito à autodeterminação dos povos.

A ação militar de ontem expôs o tamanho da trapalhada do capitão. Alheio às lorotas bolsonaristas, o Kremlin deflagrou a guerra e lançou o planeta num momento de incerteza. O Itamaraty subiu no muro para não contrariar o presidente. Divulgou uma nota envergonhada, que evita condenar a invasão e pede a “solução pacífica das controvérsias”.

Até o fim do dia, Bolsonaro fingiu ignorar o ataque de Putin. No cercadinho do Alvorada, posou para selfies e perguntou o placar do jogo do Palmeiras. À tarde, cumpriu agenda de candidato e passeou de moto no interior paulista. Só tratou da crise internacional à noite, para desautorizar o vice-presidente Hamilton Mourão.

O general havia declarado que o Brasil “não está neutro” e “não concorda” com a violação do território ucraniano. O capitão respondeu que ele “deu peruada” e opinou sobre o que “não lhe compete”. Coadjuvante do monólogo presidencial, o ministro Carlos França se esquivou entre generalidades e informações de serviço consular. Para não perder o hábito, foi submetido a outra humilhação pública. Bolsonaro exibiu uma foto de si mesmo e perguntou se estava bonito. “Muito bom, presidente”, concordou o chanceler.