A reabertura de lojas e centros comerciais em São Paulo e no Rio de Janeiro atende a uma pressão compreensível pela retomada da economia. Ninguém aguenta – nem pode – ficar em quarentena eterna. É, porém, um risco enorme para a saúde da população. Os critérios adotados por governos e prefeituras, apesar da racionalidade aparente, não têm o menor respaldo científico. A retomada poderá levar rapidamente a uma escalada nos casos, ao colapso dos hospitais e a um morticínio ainda mais cruel e doloroso.
Num post de abril, levantei seis critérios que deveriam ser adotados para suspender as quarentenas: 1) queda consistente nos casos; 2) capacidade de atendimento médico; 3) capacidade de testes; 4) extensão da imunidade na população; 5) estrutura para vigilância e isolamento de novos casos; 6) manutenção de medidas preventivas de higiene e distanciamento.
Dos seis, apenas dois foram aparentemente atendidos na tomada da decisão: a capacidade de atendimento hospitalar (houve leve redução na demanda) e medidas preventivas (uso de máscaras e redução de fluxo em lojas). Acreditar que isso bastará para deter a transmissão no vírus não passa de pensamento desiderativo. Diante das enormes dúvidas científicas que persistem, equivale a abandonar o princípio da precaução com a vida. É, numa palavra, apostar na sorte contra a morte.
Não faltam motivos para ceticismo. O primeiro é a eficácia comprovada das medidas adotadas até agora para deter o vírus. Um estudo publicado esta semana na revista científica britânica Nature reuniu dados de 1.717 localidades em seis países e concluiu que elas evitaram 530 milhões de casos. Ou, pela letalidade estimada para a Covid-19, entre 3 milhões e 4 milhões de mortes. Não é pouco se levarmos em conta que a contagem oficial de mortos ainda não atingiu 500 mil. Se funcionaram até agora, qual é o efeito esperado do relaxamento? Não é preciso pensar muito para responder.
Mas será que isso significa que não possa haver alívio parcial no isolamento? Cientistas britânicos tentaram responder à pergunta noutro estudo, publicado semana passada na revista médica The Lancet. Eles avaliaram o efeito, no Reino Unido, de medidas como volta às aulas, isolamento apenas dos idosos, isolamento voluntário daqueles que apresentam sintomas, redução nos contatos sociais e até mesmo o efeito gerado pelo hábito de deixar as crianças com os avós.
A conclusão não foi animadora: nenhuma das medidas, adotadas sozinhas ou em conjunto, poupará o país de novos lockdowns. A maior redução na mortalidade será gerada pelo isolamento dos idosos. Mas apenas o distanciamento físico, resultado de quarentenas periódicas, será capaz de evitar o colapso hospitalar até o fim de 2021.
Sem a adoção de programas de testes e campanhas educativas para inculcar as medidas preventivas na população, a liberação das atividades serve apenas para gerar uma sensação ilusória de que a vida está voltando ao normal – e favorece o contágio. Sem necessariamente trazer o impacto econômico desejado, já que a chance de novas quarentenas e lockdowns permanecerá à espreita, desincentivando novos investimentos e a geração de novos empregos.
Um estudo de economistas coreanos comparou a Coreia do Sul, onde não foram implementadas quarentenas, a Estados Unidos e Reino Unido, onde houve lockdowns severos. Concluiu que, no máximo, metade da alta no desemprego pode ser atribuída aos lockdowns.
São os empregos perdidos nas empresas maiores e estabelecidas. Pequenos negócios que empregam a população mais vulnerável, em setores como comércio, hotelaria, transportes ou alimentação, sofrem de qualquer jeito. “Os efeitos desiguais da Covid-19 são os mesmos com ou sem quarentenas”, escrevem. “A suspensão de lockdowns nos Estados Unidos e no Reino Unido levará a recuperação modesta no emprego, a não ser que caiam as taxas de infecção pela Covid-19.”
É justamente na ignorância sobre as taxas de infecção e letalidade que repousa a esperança daqueles que defendem a retomada das atividades. “O problema é que, para o novo coronavírus, não temos dados, porque não houve testes suficientes para estimar a taxa de infecção na população”, afirma o economista James Stock, da Universidade Harvard, em artigo no site VoxEU.
As pesquisas realizadas até agora no Brasil para avaliar quantos já foram infectados (indicador tecnicamente chamado de “prevalência”) têm concluído que, mesmo nos locais onde a Covid-19 atingiu mais gente, como na região Norte e em estados do Nordeste, o contágio ainda está muito aquém do percentual de 50% a 70% – necessário para a redução natural da velocidade de transmissão, em virtude da proporção alta de imunes (nível conhecido como “imunidade de rebanho”).
Há quem acredite que já estamos num patamar mais alto de imunidade, como o Nobel de Química Michael Levitt ou o neurocientista Karl Friston. Se houver mesmo mais infectados que não apresentam sintomas, ou se existir algum tipo de proteção natural desconhecida ao vírus, é até possível. Nesse caso, a Covid-19 seria menos letal. Friston cogita a existência de uma certa “matéria escura” de imunidade para explicar a diferença na letalidade da Covid-19 entre Alemanha e Reino Unido. Poderia ser efeito de vacinas antigas na população, infecções por outros coronavírus ou mesmo tipo sanguíneo.
Todas são hipóteses científicas que precisam ser investigadas e esclarecidas. É o debate entre pontos de vista opostos que garante a qualidade da ciência. Só que ele exige um tempo que a realidade da pandemia não garante. Sempre haverá, portanto, algum grau de ignorância nas decisões. Isso não significa, porém, que devam ser tomadas no escuro. Ou, como em São Paulo e no Rio de Janeiro, à revelia do indicador mais óbvio e fundamental – a alta em mortes e casos.
Em vez de atender a pressões comerciais, os governos locais deveriam ter aproveitado os meses de quarentena para: 1) criar um programa de testes capaz de avaliar a extensão do contágio em bairros, ou mesmo ruas; e 2) implementar um sistema para rastrear contatos e isolar infectados e casos suspeitos. Nada disso foi feito.
As iniciativas foram tímidas e insuficientes. Valem para o Brasil as palavras de Stock sobre os Estados Unidos: “Decisões que podem salvar milhões de vidas e evitar uma catástrofe econômica, cujos efeitos se farão sentir por décadas, dependem da falta de dados para estimar um único parâmetro: quão disseminado este vírus realmente está”.
Helio Gurovitz – G1