O que separa o ex-governador da Paraíba, Ricardo Coutinho (PSB), do ex-governador do Rio, Sergio Cabral (MDB), condenado a 267 anos de prisão?
Para a revista Crusoé, nada.
Foi assim que a versão eletrônica da revista retratou o paraibano na reportagem que traz novas revelações da obscura passagem de Coutinho pelo Palácio da Redenção.
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Leia, abaixo, a reportagem da Crusoé assinada pelo jornalista Fábio Serapião.
O Cabral socialista
Assim como a Lava Jato, a Operação Calvário, do Ministério Público da Paraíba, batizou sua sétima fase de Juízo Final. Ao prender o ex-governador Ricardo Coutinho, do PSB, às vésperas do Natal, a investigação descortinou o funcionamento de um esquema azeitado de corrupção que, dizem os investigadores, era comandado pelo socialista e tinha tentáculos que alcançavam o Tribunal de Contas do estado, o Judiciário, o Ministério Público e a Assembleia Legislativa. “Estamos diante de uma verdadeira captura do poder público estadual por um grupo criminoso forte e articulado, na medida em que as ações desenvolvidas por seus integrantes foram orquestradas para, uma vez dentro da estrutura política e administrativa do estado, valer-se de todo tipo de vantagens indevidas em detrimento da máquina administrativa e da população”, cravaram os promotores do Grupo de Atuação de Combate ao Crime Organizado.
Ao longo de mais de um ano de investigação, as sete fases da Calvário resultaram em uma corrida dos integrantes da organização criminosa por acordos de colaboração. As revelações dos delatores impulsionaram o trabalho dos promotores e lançaram luz sobre negociatas diversas entre políticos, operadores financeiros, empresários, advogados e outros personagens. Os desvios somam centenas de milhões de reais — dinheiro que deveria ser aplicado, por exemplo, na saúde e na educação. O esquema, assim como ocorreu com aqueles que dominaram a cena política nacional nos últimos anos, tinha por objetivo a perpetuação do grupo de Coutinho no poder. Sua complexidade, os valores envolvidos e as ramificações por diferentes setores da máquina tornam o ex-governador uma espécie de Sérgio Cabral paraibano.
Crusoé teve acesso à íntegra do material amealhado pelos promotores. São quebras de sigilos bancário, fiscal e telefônico, gravações ambientais, organogramas e relatórios que esmiúçam o funcionamento da máquina de corrupção a serviço do socialista. O material entregue por um dos colaboradores, o lobista Daniel Gomes, ligado à Cruz Vermelha Brasileira, estende as suspeitas a magistrados de outras partes do país. Ele gravou conversas com o ex-procurador-geral da Paraíba, o advogado Gilberto Carneiro, apontado como a “ponte” de Ricardo Coutinho com o Judiciário. Em uma das gravações, que o MP deixou de fora do acordo por entender que faltavam provas de corroboração, o delator menciona o suposto contato de Carneiro com advogados próximos à desembargadora Marianna Fux, filha do ministro Luiz Fux, do Supremo Tribunal Federal. A tentativa de aproximação teria ocorrido porque o governador buscava ajuda no TSE, o Tribunal Superior Eleitoral, onde enfrentava um processo de cassação por abuso de poder político em sua campanha à reeleição, em 2014. Fux era presidente da corte àquela altura. Outro delator da operação, o ex-deputado Ivan Burity relata que Coutinho pagou 400 mil reais a um advogado do Rio de Janeiro em seu esforço para obter uma decisão favorável no TSE — o processo contra Coutinho acabou arquivado por 6 votos a 1.
Há mais elementos sobre os tribunais. É o caso de uma gravação em que um perito judicial carioca diz pagar 50% de pedágio a pelo menos um juiz, com o objetivo de ser indicado para realizar laudos em processos. Investigadores do Rio, por sinal, devem receber em breve uma parte do material coletado pelos promotores paraibanos por haver menções pouco edificantes a autoridades importantes do estado, incluindo o atual governador, Wilson Witzel. Daniel Gomes, o lobista que virou delator, afirma ter destinado 115 mil reais à campanha de Witzel em 2018. À época, Gomes também tinha contratos no Rio. O pedido de ajuda à campanha de Witzel, diz ele, partiu de um assessor do hoje senador Arolde de Oliveira. Crusoé obteve as conversas de WhatsApp entregues por Daniel Gomes para provar o repasse e aos depoimentos da secretária dele, que também virou delatora e contou como fez as entregas do dinheiro. Conheça, a seguir, uma parte do material.
O operador jurídico
Segundo documentos anexados à investigação, Gilberto Carneiro, o ex-procurador-geral do estado da Paraíba que é apontado pelos promotores como responsável por fazer a “ponte” entre o grupo liderado por Ricardo Coutinho e órgãos de controle e o Judiciário, exercia influência sobre diferentes áreas, em “todos os assuntos, inclusive, na escolha de membros do TCE, MP e até do TJ-PB (Tribunal de Justiça da Paraíba) com o aval do ex-governador Ricardo Coutinho”. Durante o período em que representou os interesses de organizações sociais contratadas para atuar nas áreas de saúde e educação, o delator Daniel Gomes gravou as conversas com autoridades para as quais costumava destinar propinas. Carneiro, a “ponte” com o Judiciário, e o próprio Ricardo Coutinho chegaram a ser gravados. É justamente em uma dessas gravações que Gomes menciona a tentativa de Coutinho de se aproximar da filha do ministro Luiz Fux quando seu mandato estava sob risco no TSE. O processo na corte também é assunto da delação do ex-deputado federal Ivan Burity, que em um dos capítulos trata da entrega de dinheiro, às vésperas do julgamento, para um advogado carioca. Leia aqui o anexo, intitulado “Pagamento de 400 mil a um advogado do Rio, enviado por Gilberto referente à decisão TSE sobre Ricardo Coutinho”. O delator não informa o nome do advogado, mas há os dois locais onde ocorreram as entregas: o hotel Windsor Califórnia e o restaurante La Maison, em Copacabana.
O dinheiro para a campanha
Embora tenha se desenrolado na Paraíba, a Operação Calvário teve início com informações compartilhas com os promotores paraibanos pelo MP fluminense, onde o grupo de Daniel Gomes também atuava. O lobista conta que, por causa de sua atuação em terras fluminenses, foi procurado por Robson dos Santos França, ex-assessor do senador Arolde Oliveira, do PSD, que lhe pediu dinheiro para a campanha de Wilson Witzel. O então candidato a governador era apoiado por Arolde de Oliveira, integrante da bancada evangélica que disputava uma vaga no Senado. O pedido, diz Daniel Gomes, foi feito logo após o primeiro turno das eleições de 2018 (leia o relato). “Solicitou ajuda financeira para campanha, afirmando que Witzel tinha crescido muito nas pesquisas e que, se ele ganhasse a eleição, a ajuda financeira me abriria portas junto ao governo do estado”, afirma o delator. Ele diz que os 115 mil reais foram repassados, em parcelas, com a ajuda de sua secretária, Michele Louzada. Depois de também assinar um acordo de colaboração, ela detalhou (leia aqui) os quatro encontros com o assessor de Arolde de Oliveira em shoppings do Rio. Daniel Gomes também entregou as conversas de WhatsApp nas quais combinou as entregas com Robson França em que os repasses são agendados (confira a troca de mensagens). A Crusoé, em nota, a assessoria de Witzel afirmou que Robson Santos não trabalhou na campanha e que todas as informações sobre doações foram prestadas à Justiça Eleitoral. “A campanha de Wilson Witzel não teve caixa dois e o governador condena tais práticas”, diz o texto.
Doações de banco e empresa em troca de benefícios
O ex-deputado Ivan Burity reservou um dos capítulos de sua delação para narrar uma ordem que ele diz ter recebido de Ricardo Coutinho na campanha eleitoral de 2014. O socialista era candidato à reeleição. O Bradesco e a Alpargatas, dona da Havaianas, haviam feito doações para o tucano Cássio Cunha Lima, adversário de Coutinho na disputa. Descontente, o então governador ordenou que Burity e a então secretária de Administração da Paraíba, Livânia Farias, viajassem a São Paulo, para também pedir doações às duas empresas. A ordem, diz o delator, era “ir pra cima” e conseguir 3 ou 4 milhões de reais. Deu certo. Burity conta que o Bradesco e a Alpargatas concordaram em dar o dinheiro, oficialmente, mas as doações foram condicionadas a benefícios no governo de Coutinho. Diz ele: “Os benefícios do Bradesco estavam relacionados ao processamento e operacionalização dos créditos consignados tomados pelos servidores públicos estatais ao passo que Alpargatas tinha benefícios fiscais”. Teria funcionado. O delator conta que a doação estreitou a relação do banco com o grupo de Coutinho. “Fato relevante: A partir deste evento a relação com Ricardo Coutinho e seu governo se estreitou com o Bradesco de tal forma que não só os consignados foram mantidos, mas também a folha de pagamento do estado migrou do Banco do Brasil ao Bradesco, tudo intermediado pela Livânia, que era secretária de administração”, contou ele (leia aqui). Procurados por Crusoé, Bradesco e Alpargatas não se manifestaram.
O pedágio dos juízes do Rio
Uma das conversas entregues pelo delator Daniel Gomes aos investigadores é com um de seus parceiros de negócio, Maurício Neves. Em 44 minutos, os dois falam sobre a preocupação com a delação do operador Jorge Luz, alvo da Lava Jato por sua atuação na Petrobras, e sobre o novo trabalho de Neves, como perito judicial em processos no Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro. Em tom de reclamação, Neves diz ser um trabalho “bem legal”, mas que não dá “fluxo seguro”. Depois de expor o descontentamento, em tom mais baixo, ele conta ao lobista o que costumava fazer para que um juiz carioca o nomeasse perito nos processos: “O juiz me cobra 50% de pedágio”. “O juiz?”, indaga o lobista. “É. Uma irmã dele que negocia comigo”, explica. Na sequência, o perito diz que, no começo, resistiu à parceria, mas acabou cedendo. “Eu relutei, relutei. Mas falei, vou entrar e criar uma dependência menor. Eu entrei e estou pagando 50%. Em seis meses, o cara me deu 40 casos. Mas nem todos depositaram a verba. Tem caso de 160 mil”, diz.
A relação com os alvos da Lava Jato
Como quase tudo na crônica político-policial brasileira, o esquema paraibano se entrelaça com outros, inclusive com o petrolão. O lobista Daniel Gomes conta que era próximo de figuras proeminentes colhidas pela Lava Jato. Fala, por exemplo, de sua relação com Jorge Luz, operador do MDB na Petrobras, com o ex-deputado federal petista Cândido Vacarezza e com Leonardo Picciani, ex-ministro do governo de Michel Temer (leia aqui). Gomes conta que os três o ajudaram a conquistar contratos na Secretaria de Saúde do Rio, então comandada por Sérgio Côrtes, homem de confiança de Sérgio Cabral. O delator chegou a entregar gravações de conversas com Jorge Luz e com outras pessoas próximas a ele. Em algumas, os interlocutores se mostram preocupados com a possibilidade de o operador do MDB, que havia caído em desgraça na Lava Jato, fechar um acordo de delação premiada com os procuradores de Curitiba. Não imaginavam que, em pouco tempo – e, ironicamente, pelas mãos do aliado a quem manifestavam a preocupação –, estariam metidos em outra rumorosa investigação. Os cofres públicos agradecem.